CENA 2.0 - Reconfiguração e suas razões (2)
Fonte: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/pf-deflagra- acao-contra- pirataria-na- internet-e-prende-grupo- que-gerenciava- site
Continuando nossa saga de discutir os motivos que culminaram em alterações profundas na indústria da música pós anos 1990, vamos tentar entender um pouco melhor dois fatores que estão diretamente vinculados, apesar de não parecer em um primeiro momento.
O primeiro se trata da mudança de foco dos consumidores de música, o que passa quase que desapercebido na maioria das análises sobre o tema. Demorou bastante para os produtores de conteúdo compreenderem como de fato o público passou a buscar música, e talvez por isso essa mudança acabe sendo considerada mais como uma consequência do que uma causa das transformações. Apesar de soar um tanto quanto óbvio, é importante frisar que a individualização da experiência musical é um fenômeno que vem acontecendo desde o fim do século XIX e se aprimora a cada novo suporte (já abordamos um pouco disso em uma coluna anterior, né? Relembre aqui!). Com o walkman, diskman, culminando nos iPods e MP3 Players, a escuta foi ficando cada vez mais individual e ampla. Foi sendo possível escutar uma quantidade cada vez maior de música em único aparelho, sem trocar de fitas ou CDs. E tudo ao alcance de um aparelho cada vez menor, mais leve e, principalmente, multifuncional. O mundo nos exige uma multifuncionalidade, e é esse o novo consumidor de música que vem se desenvolvendo depois da década de 1990. Pela disponibilidade cada vez maior de música e em quantidade maior também, ele passa a ser ao mesmo tempo mais exigente e participativo, inserido em um ambiente de convergência de mídias. Quem escuta música hoje em dia, muitas vezes, também quer comentar, compartilhar, criticar, enfim, participar de forma mais ativa do processo e da própria indústria. Logo, quem produz música deve estar sensível a essa nova perspectiva de quem vai escuta-la.
O segundo aspecto diz respeito à pirataria. Muitos agentes das grandes gravadoras e até alguns estudiosos chegaram a apontar que a pirataria foi o grande responsável pela crise da indústria fonográfica durante a década de 1990. O mercado informal de discos no Brasil é uma realidade antiga, começou com as fitas cassetes e se expandiu com o surgimento dos CDs e dos aparelhos que replicavam essas mídias. É inegável que o comércio informal tem seu impacto importante na queda das vendas de discos. Porém ele não é o único e provavelmente nem chega a ser o principal causador dessa “crise”. Aliás, a retração das vendas de discos físicos representa apenas um aspecto de uma transformação mais complexa e sistêmica da
indústria da música, e não pode ser considerado uma única grande tragédia que alterou todo o resto da cadeia. Se este fator está inserido em um contexto maior, logo a pirataria também está e devemos analisar por uma perspectiva mais ampla, mais realista e mais social. A partir do surgimento do MP3, a chamada pirataria virtual causa um impacto imediato justamente no público consumidor de música. Foi como se uma faísca detonasse um barril de pólvora. Aos poucos, esse ouvinte passou a querer ser mais participativo e interativo justamente por ter acesso ao conteúdo musical de uma forma que antes ele não tinha. E isso acabou gerando um interesse cada vez menor pela mídia física. Ao meu ver, por mais óbvio que pareça, esse é o fator crucial, muito mais do que os camelôs que vendem produtos falsificados no centro das grandes cidades brasileiras. Inclusive até esse mercado informal foi afetado por esse novo paradigma de consumir música digitalmente. Em um primeiro momento, as grandes gravadoras tentaram travar uma guerra jurídica contra os principais distribuidores como o Napster, tendo um relativo sucesso momentâneo. Mas o estrago já estava feito, e a própria indústria passou a aceitar e incorporar o comércio digital, tanto é que hoje já superou as vendas físicas.
O próprio mercado informal de discos teve início com respaldo das grandes gravadoras, que viam nele uma alternativa para desovar seus estoques. Claro que com o tempo esse mercado ganhou vida própria e com as tecnologias de replicação se tornaram uma pedra no sapato da indústria fonográfica. Mas é sempre bom alertar que a transformação foi (e ainda é) fruto de uma conjuntura social,econômica e até política, muito mais ampla do que é divulgado e comentado nos grandes veículos de comunicação. Não há apenas um vilão. Aliás, nem existem mocinhos e bandidos, mas sim uma reconfiguração completa de práticas antigas que se somam, se transformam e geram um novo arranjo. A “pirataria” não vem mais só pelas ondas do rádio, mas sem dúvida vivemos várias revoluções por minuto.