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#ApostaMADM - Ventre


Deparei-me com os mais inusitados casos ao longo de meus 21 anos de atendimento na Associação Psiquiátrica de Brasília: desde o rapaz que enfiou uma chave de fenda na orelha esquerda, porque queria calar as vozes de sua cabeça; até o senhor com pesados tiques nervosos, que dizia em voz alta o primeiro nome que lhe vinha à mente toda vez que pensava em algo ruim, em uma desesperada tentativa de eximir-se de qualquer infortúnio decorrente de seus pensamentos negativos que pudesse ocorrer. Todos os pacientes me tocam, em maior ou menor intensidade.

Houve, no entanto, um caso especial, do qual nunca me esqueci e tampouco superei. No dia 4 de abril de 2016, tornei-me médico de uma moça de uns aproximados vinte anos, chamada Alia Oliveira. Foi internada à força por seus familiares, que alegavam um vício alarmante e doentio em um grupo musical chamado “Ventre”; alegação essa que, posteriormente, provou-se acertada. Seus primeiros dizeres ao passar pela porta giratória da clínica foram em algo semelhante a “Larissa você toca como uma deusa”. Em minhas iniciais tentativas de aproximação, tudo que Sra. Oliveira dizia era “deixa a bailarina dançar”, de modo que, em meus movimentos inaugurais do tratamento, pouco ou nada consegui extrair daquela moça.

Falava com tamanha paixão que, em uma última cartada para dar prosseguimento ao caso, decidi por conhecer a tal Ventre, supostamente responsável pela adquirida insanidade da Sra. Oliveira. Chegando ao fim de meu expediente, apressei-me em direção à minha moradia, liguei meu notebook (que já teve lá seus dias de glória) e, enquanto a máquina inicializava, preparei meu ritualístico café do pós-ofício. Voltando com uma bem-servida xícara para meu escritório, iniciei as pesquisas sobre meu objeto de estudo.

A tal banda Ventre possuía 3 integrantes: a guitarra e voz Gabriel Ventura; o baixista Hugo Noguchi; e a baterista (e objeto de idolatração por parte de minha paciente) Larissa Conforto. Descobri também que o grupo possuía um disco homônimo com 11 canções e 55 minutos de duração, lançado no ano de 2015. Não pude deixar de pensar em como, sob circunstâncias usuais, 55 minutos é pouco tempo para levar um indivíduo são à loucura. Afastei rapidamente o pensamento; 55 minutos é tempo mais que suficiente. Cheguei ao ponto de colocar meus fones de ouvido e escutar, eu mesmo, o aclamado CD.

Não pude deixar de notar que se tratava de um bom grupo; contudo, à primeira ouvida, fui incapaz de identificar qual elemento ali seria responsável por, de uma maneira tão sobrenatural, levar à loucura. Minhas reflexões foram interrompidas por volta da 3ª faixa, quando notei um problema de mau-contato no fone direito, de modo que optei por tirar os fones continuar minha escuta na caixa de som. Não tardou até que minha mulher, que ouviu a música lá de sua biblioteca, penetrasse meu escritório com notória curiosidade e entusiasmo, indagando que artista maravilhoso era aquele. Informei-a que era meu mais recente objeto de estudo, a banda Ventre. Ela agradeceu e retrocedeu aos seus aposentos. Após terminar o álbum e fazer minhas anotações, deitei na cama e prontamente dormi.

O que se sucedeu foi de tamanha incredulidade que, caso não tivesse à minha disposição testemunha ocular de 90% dos habitantes de Brasília, provavelmente teria eu mesmo sido internado por relatar os seguintes acontecimentos. Tendo tomado um café da manhã reforçado e, em vão, procurado minha esposa para me despedir (que, na hora, julguei ter saído mais cedo de casa para trabalhar), peguei meu carro e logo iniciei minha jornada em direção ao meu local de ofício; ao que, logo no princípio do trajeto, notei pelas ruas inúmeros grupos de pessoas altamente entusiasmadas, dançando ao ritmo de uma música que me era familiar. Forcei a vista para enxergar os dizeres da camiseta de um dos indivíduos. “Ventre”. Puta que pariu, enlouqueci, foi tudo que consegui pensar.

Segundo me foi posteriormente informado, sob a forma de diversos relatos separados que logo juntei em uma tentativa de explicar o fenômeno, o que ocorreu foi o seguinte: minha mulher gostou tanto do som que rapidamente compartilhou a banda em seu grupo de amigos do WhatsApp; todos amaram o power-trio, e um desses amigos fez questão de falar sobre a Ventre em seu outro grupo do WhatsApp. Nesse segundo grupo, estava o proprietário de uma grande rádio de Brasília que amou a banda, e tão logo inseriu-a na programação. A partir daí, tornou-se viral, e tudo que sei é que, chegando ao Centro Psiquiátrico, havia uma enorme aglomeração de pessoas que exigiam a imediata liberação da Sra. Oliveira, sob o pretexto de que sua obsessão para com a Ventre era inteiramente justificável e racional. Um grupo mais radical chegou a requisitar minha prisão e a dos familiares de Alia Oliveira, que a internaram, acusando-nos de agir com má-fé e com uma sanidade suspeita. Esses radicalistas, graças ao bom Deus, malograram em sua missão, mas o hospital ficou sem alternativas se não dar alta à Sra. Oliveira naquele mesmo dia.

Desde esse incidente, a banda Ventre tornou-se o símbolo oficial de Brasília, suas músicas compõem 95% das programações da rádio e uma estátua foi erguida em homenagem à Larissa Conforto. Quanto a mim, fiquei tão traumatizado que nunca mais escutei nada deles (pelo menos, não por livre e espontânea vontade, dado que suas músicas podem ser escutadas a qualquer momento nas mais variadas ruas da cidade). Mas reconheço que é uma banda maravilhosa. Pretendo ouvir, quando estiver de novo preparado psicologicamente, o Ao Vivo No Méier.

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